terça-feira, 2 de junho de 2009

o dragão


Era uma vez e não era uma vez uma menina que tinha muita curiosidade pelas palavras. Não por palavras de qualquer tipo, mas por aquelas escritas no papel. Olhava intrigada para os adultos que passavam horas escondidos atrás dos jornais na poltrona da sala, absortos em decifrar aquele monte de sinaizinhos pretos no papel imenso. Não entendia os rabisquinhos que as pessoas grandes faziam a torto e a direito, os envelopes que o carteiro sabia onde entregar, as esquinas com placas coloridas que faziam os carros virar.
Ainda pequenina ficava imaginando que mistérios as palavras escritas escondiam, que coisas estranhas elas diziam. Descobriu que as letras se juntavam para formar os nomes das coisas, e que os nomes se juntavam para contar coisas sobre as coisas… E assim passava horas folheando as revistas da mãe e contando em voz alta suas histórias imaginadas.
Nem preciso dizer que ela adorava sopa de letrinhas. Tinha certeza de que limpando o prato, comendo todinhas, até mesmo as letras mais esquisitas, acordaria no dia seguinte sabendo todas as histórias que elas tinham pra contar. Bom, talvez nem todas, mas sempre se lembrava das mais bonitas.
E assim ela cresceu. Uma parte dela andava descalça, brincava na terra, jogava bola e pulava sela como as outras crianças. Mas outra parte, a que tinha medo do escuro, vagava por paisagens bem diferentes: pulava muros, voava em dragões coloridos, navegava em barrigas de baleias e em mares de sereias.
Quando finalmente aprendeu a ler e a escrever, soube que aquele outro mundo em que ela vivia existia também em outro lugar: nos livros de fantasia. Então sua imaginação voou mais alto, viveu aventuras em ilhas perdidas, casas assombradas e bosques de árvores falantes. Comeu casas inteiras de chocolate e fez amizade com gigantes.
Mais tarde percebeu que também podia organizar as letras para formar nomes e juntar os nomes para contar coisas e assim escrever suas próprias histórias. Quando fazia isso, aquele mundo em que ela vivia saía da memória, ficava mais real, e ela podia convidar outras pessoas para brincar nele também.
E então pôs-se a escrever.
Escreveu sobre castelos, princesas, tartarugas viajantes e poetas ambulantes… Escreveu sobre mamutes e elefantes. Sobre pessoas azuis e mundos sem igual. Escreveu sobre o bem e o mal.

E assim foi até o dia em que teve de responder à pergunta que fazem a todas as crianças mais ou menos grandinhas:
“O que você vai ser quando crescer?”
Como o que ela mais gostava era escrever, resolveu ir para uma escola em que as pessoas aprendiam a escrever histórias.
No começo, tudo ia bem… Conheceu outras crianças como ela, que também gostavam de juntar as letras para formar nomes e juntar os nomes para contar coisas sobre as coisas.
Mas aos poucos foi descobrindo que havia algo de errado com as histórias que as pessoas contavam naquela escola. Todas elas tinham de ser reais, sobre coisas que de fato existem nesse mundo que os olhos podem ver. Não podia escrever nada inventado, não podia dar nenhuma notícia do seu mundo imaginado, tudo tinha de ser baseado em fato.
Tudo bem… Talvez isso seja crescer, pensou. E se rendeu a aprender como fazer pra contar sobre as coisas que já existem. Às vezes dava uma ou outra escorregadela, a imaginação escorregava pela manga e alcançava os dedos no teclado, inventando uma coisinha ou outra num texto pra lá de chato.
E assim passou por anos de treinamento, trancafiando sua imaginação como a um dragão enjaulado. O que ela não sabia é que como não colocava mais as suas histórias no papel, elas iam se enrolando dentro dela, num carretel. Não demorou para que a menina, já grande, passasse a viver muito mais na fantasia do que no mundo real sobre o qual ela escrevia todo dia. A parte dela que andava descalça e pulava sela já quase não existia.
E, não sei se vocês sabem: os monstros da nossa infância crescem junto com a gente. Como as histórias não eram mais contadas, ficaram todas emaranhadas. Agora, no mundo da sua imaginação, só sobrara o medo do escuro e um grande dragão. E quanto mais ela ignorava o dragão de quando era menina, mais ele botava fogo pela narina.
Ela já não distinguia o que era real e o que era fantasia. No meio da confusão, tudo era dor e frustração. Até que um dia, um sábio doutor, que tudo sabia, apresentou-lhe a solução.
Tudo o que ela tinha de fazer, até o fim dos dias, era escrever sobre o dragão.
O doutor falou que conhecia muita gente que só vivia de ilusão. Isso é complicado, ele disse, porque se as histórias não acontecem, o contador fica frustrado. Quando o dragão da fantasia é trancafiado, ele se volta contra o próprio criador. Mas quando a gente escreve, ele voa, e liberta a imaginação. E a pessoa pode viver uma realidade mais tranqüila.
E foi assim que ela encontrou a ponta do carretel emaranhado, voltando a escrever sobre seu mundo imaginado. Contou tudo o que sabia sobre o dragão inventado: como suas unhas eram negras, como suas asas eram brilhantes e suas escamas eram secas. Como ele gostava de voar alto no céu e quando era preso fazia um escarcéu.
Esse primeiro texto que ela escreveu sobre o dragão terminava assim:
“Um passarinho me disse que quando uma história é contada, ela deixa de viver dentro da gente. E a gente é que passa a viver dentro dela. É assim que os grandes dragões perdem a maldade e os sonhos se transformam em realidade.”

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