quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A casa da infância


A casa da minha infância

tinha quintal e porão

como só as casas de infância

sabem ter.

Era bem alta e amarela a casa da minha infância

e dava nítida impressão

de que era muito antiga

desde que fora feita.

E tinha uma varanda

a casa da minha infância

com uma escada branca ao lado

que subia

e torta,

parava,

subia

e chegava.

A casa da minha infância

tinha caramanchão

sobre o qual escoria

uma primavera vermelha

florindo e tingindo

a rua de paralelepípedos.

Lá dentro,

na casa da minha infância,

tinha sala de visitas

com um quadro de Jesus

vigiando.

Depois de jantar,

Leito ceia prateado,

Cristaleira e o rádio

R.C.A Victor,

sintonizando os programas

de Rádio Nacional do Rio de Janeiro,

Brasil

(patrocínio de casa maçom).

Tinha, ainda, copa,

quarto,

quarto, corredor, banheiro

quarto e cozinha,

fogão DAKO elétrico e

em cima,

a inscrição no pano de prato:

“Quando em seu coração reine a paz”.

a menor casa do mundo num palácio se faz.”

A casa da minha infância

tinha um jabuti,

um pé de limão

e uma parreira.

Mas tinha, sobretudo,

os mistérios da cortinas,

os segredos dos armários,

a sedução do toucador

e era imensa,

forte.

O mundo entrava timidamente

pela fresta da janela

na casa da minha infância.

A Princesa Obstinada






Um certo rei acreditava que o correto era que lhe haviam ensinado e aquilo que pensava. Sob muitos aspectos era um homem justo, mas também uma pessoa de idéias limitadas.



Um dia reuniu suas três filhas e lhes disse:



- Tudo o que tenho é de vocês, ou será no futuro. Por meu intermédio vieram a este mundo. Minha vontade é o que determina o futuro de vocês, e portanto o seu destino.



Obedientes e persuadidas da verdade enunciada pelo pai, duas das moças concordaram. Mas a terceira retrucou:



- Embora a minha posição me obrigue a atacar as leis, não posso acreditar que meu destino deva ser sempre determinado por suas opiniões.



- Isso é o que veremos – disse o rei.



Ordenou que prendessem a jovem numa pequena cela, onde ela penou durante alguns anos. Enquanto isso o rei e suas duas filhas submissas dilapidaram bem depressa as riquezas que de outro modo também seriam gastas com a princesa prisioneira.



O rei disse para si mesmo:



"Essa moça está encarcerada não por vontade própria, mas sim pela minha. Isto vem provar, de maneira cabal para qualquer mentalidade lógica, que é minha vontade e não a dela que está determinando seu destino."



Os habitantes do reino, inteirados da situação de sua princesa, comentaram:



- Ela deve ter feito ou dito algo realmente grave para que um monarca, no qual não descobrimos nenhuma falha, trate assim a sua própria filha, semente viva de seu sangue.



Mas ainda não haviam chegado ao ponto de sentir a necessidade de contestar a pretensão do rei de ser sempre justo e correto em todos os seus atos.



De tempos em tempos o rei ia visitar a moça. Conquanto pálida e debilitada pelo longo encarceramento, ela se obstinava em sua atitude.



Finalmente a paciência do rei chegou a seu derradeiro limite:



- Seu persistente desafio – disse à filha – só servirá para me aborrecer ainda mais, e aparentemente enfraquecerá meus direitos caso você permaneça em seus domínios. Eu poderia matá-la, mas sou magnânimo. Assim, me limitarei a desterrá-la para o deserto que faz divisa com meu reino. É uma região inóspita, povoada somente por animais selvagens e proscritos excêntricos, incapazes de sobreviver em nossa sociedade racional. Ali logo descobrirá se pode levar outra existência diferente daquela vivida no seio de sua família; e se a encontrar, veremos se a preferirá à que conheceu aqui.



O decreto real foi prontamente acatado, e a princesa conduzida à fronteira do reino. A moça logo se encontrou num território selvagem e que guardava uma semelhança mínima com o ambiente protetor em que havia crescido. Mas bem depressa ela percebeu que uma caverna podia servir de casa, que nozes e frutas provinham tanto de árvores como de pratos de ouro, que o calor provinha do Sol. Aquela região tinha um clima e uma maneira de existir próprios.



Depois de algum tempo ela já conseguira organizar sua vida tão bem que obtinha água de mananciais, legumes da terra cultivada e fogo de uma árvore que ardia em chamas.



"Aqui", murmurou para si própria a princesa desterrada, "há uma vida cujos elementos se integram, formando uma unidade, mas nem individual ou coletivamente obedecem às ordens de meu pai, o rei."



Certo dia um viajante perdido, casualmente um homem muito rico e ilustre, encontrou a princesa exilada, enamorou-se dela e a levou para seu país, onde se casaram.



Passado algum tempo os dois decidiram voltar ao deserto, onde construíram uma enorme e próspera cidade. Ali, sua sabedoria, recursos próprios e sua fé se expandiram plenamente. Os ‘excêntricos’ e outros banidos, muitos deles tidos como loucos, harmonizaram-se plena e proveitosamente com aquela existência de múltiplas facetas.



A cidade e a campina que a circundava se tornaram conhecidas em todo o mundo. Em pouco tempo eclipsara amplamente em progresso e beleza o reino do pai da princesa obstinada.



Por decisão unânime da população total, a princesa e seu marido foram escolhidos como soberanos daquele novo reino ideal.



Finalmente o pai da princesa obstinada resolveu conhecer de perto o estranho e misterioso lugar que brotara do antigo deserto, povoado, pelo menos em parte, por aquelas criaturas que ele e os que lhe faziam coro desprezavam.



Quando, de cabeça baixa, ele se acercou dos pés do trono onde o jovem casal estava sentado e ergueu seus olhos para encontrar os daquela soberana, cuja fama de justiça, prosperidade e discernimento superava em muito o seu renome, pôde captar as palavras murmuradas por sua filha:



- Como pode ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino e fazem sua própria escolha.



Do livro: Histórias da Tradição Sufi - Editora Dervish